sábado, 23 de junho de 2007

Uma Mossoroesnse aos Olhos de Drummond by Marcos Ferreira

Com uma incontável legião de amigos e admiradores espalhados por todo o Brasil e parte do mundo, o poeta Carlos Drummond de Andrade ligou sua ponte sentimental-afetiva também com a cidade de Mossoró. Essa aproximação ocorreu por meio da mossoroense Luzia Helena de Carvalho, nascida aos 13 de agosto de 1926 e morta no último dia 23 de novembro, em virtude de um derrame cerebral.
Por cerca de dez anos, Dona Luzia fez parte do cotidiano familiar e afetivo de Carlos Drummond. Parentes dela informam que por volta de 1955 a 1970 a mossoroense morou na casa do poeta, no Rio de Janeiro, onde começou trabalhando como doméstica e depois tornou-se cozinheira da família. Por seu espírito alegre e seu carisma irradiante, Dona Luzia conquistou a confiança e o carinho de todos da casa.
Uma prova dessa estima e atenção para com a mossoroense, o poeta mineiro expressou através de sua escrita. A homenagem veio na crônica intitulada ‘Luzia’, que integra o livro A Bolsa e a Vida, edição de 1971, da editora Sabiá, em convênio com o Instituto Nacional do Livro e o MEC. O leitor pode conferir integralmente nesta página a transcrição do texto que o poeta escreveu para Luzia Helena.
Até os últimos dias de vida, Dona Luzia guardou com muito carinho um volume de A Bolsa e a Vida com dedicatória do próprio pulso do poeta, redigida em 1° de novembro de 1971. Essa história, que bem pouca gente conhece, foi relatada à reportagem de O Mossoroense pela enfermeira Fátima Oliveira, sobrinha de criação de Luzia Helena, visto que o pai de Fátima foi criado pela mãe de Dona Luzia.
Segundo Fátima, a vida de sua tia foi sempre muito ausente de Mossoró. Na década de 50, ainda muito jovem, Luzia foi embora para o Rio de Janeiro em companhia de familiares. “Foi por essa época que ela teve acesso à casa de Drummond. Ela começou como copeira e depois assumiu a cozinha da casa”, diz Fátima, casada com o comerciante Wolgran Athayde, sobrinho do escritor Austregésilo de Athayde.
A CORRESPONDÊNCIA
Mesmo após haver deixado a residência do poeta por causa de um noivado que não deu certo, Luzia Helena não perdeu o contato afetivo com a família Drummond. Fátima Oliveira informa que durante muitos anos ainda chegavam a Mossoró correspondências, cartões natalinos ou de aniversário endereçados à sua tia. A mossoroense era muito estimada também pela esposa e a filha do poeta.
“Embora não fosse uma pessoa de muita instrução escolar e menos ainda tivesse outras relações com o meio literário de seu tempo, minha tia falava com muito orgulho de sua amizade com a família Drummond. Tudo que dissesse respeito ao poeta, ela guardava com muito carinho. Esse livro era o seu maior tesouro, assim com as cartas, cartões de festas e outras coisas que ela recebia pelo Correio”, comenta Fátima.
FAMÍLIA
Apesar do insucesso com o primeiro noivado e de nunca ter tido filhos, Luzia Helena encontrou a felicidade ao lado de Rufino Roque de Carvalho, um natalense que trabalhou alguns anos embarcado no porto de Santos e que hoje reside em Mossoró. Luzia era filha de Manoel José de Oliveira e de Maria Herculana da Conceição, ainda viva com 95 anos de idade, moradora da rua Melo Franco, 868, em Mossoró.
A BOLSA E A VIDA
A respeito da obra em que homenageia a mossoroense, à época em sua quinta edição, Drummond escreveu o seguinte: “O título A Bolsa & a Vida não deve ser interpretado em sentido truculento. A bolsa é uma é uma bolsa modesta de comerciária, achada num coletivo. E a vida é isso e tudo mais que o livro procura refletir em estado de crônica, isto é, sem atormentar o leitor — apenas, aqui e ali, recordando-lhe a condição humana.”
Vamos ao texto de Carlos Drummond:

LUZIA
— NÃO está me conhecendo? Sou a Luzia. Em casa todos bem?
— Oh, Luzia, desculpe. Ando com a vista meio fraca. Mas você está um bocado alinhada, criatura!
— O senhor acha? Bondade sua.
— Acho, não. É fato. Você se casou, Luzia?
— Que nada, doutor. Casamento é pra quem pode, quem sou eu?
— Você estava noiva quando saiu lá de casa.
— Estava sim, mas o senhor quer que eu seja franca? Não gostava dêle, queria só casar, pra dar gosto à minha tia, que me criou. Aí eu pensei assim: Não tenho amor a este camarada, depois do casamento faço a infelicidade dele, não é direito. Até que meu noivo era legal, tinha uma alfaiataria em Niterói, carro na praça. Não fiz bem?
— Você foi muito correta, Luzia.
— Pois é. Mas depois me desiludi dos homens, sabe? Me desiludi completamente.
— Tão cedo!
— Tenho 18 anos por fora, por dentro já perdi a conta. Veja só; fui ser cem por cento com o meu noivo, e quando arranjei outro namorado, não dei sorte.
— Também não gostou dele?
— Gostei demais, aí é que está. Foi o meu erro. Aí ele me disse que era casado, não podia remediar nada.
— Sendo assim...
— Mentira dele, doutor. Minha prima gostou de um cara que não usava aliança, quando foi ver ele tinha obrigação em casa, com cinco bocas. O meu, não, se fez de pai de família pra não casar.
— É pena, Luzia. Mas não fique triste, há tanto marido ordinário nesse mundo, quem sabe se você não escapou de um!
— Ah, mas agora sou eu que não penso em casamento. Tenho mais que fazer.
— E que é que você faz?
— Pois o senhor não sabe? Quando saí de sua casa, resolvi acabar com o serviço de copeira. Empregada doméstica não resolve. Fiz o curso na escola de manicura, tirei certificado e fui trabalhar num salão de mulheres. Não dava pra pagar o quarto. O porteiro de uma boate olhou pra mim e disse: “Broto, não faz unha de mulher, que é fominha, faz unha de homem.” Mudei de salão, desta vez dei sorte.
— Ótimo, Luzia.
— Graças a Deus nunca mais andei sem dinheiro, o senhor acredita? O patrão só me paga no fim do mês, mas os fregueses dão boas gorjetas, de maneiras que tenho sempre algum na bolsa. Agora estou menos folgada, porque tive de comprar móveis, o apartamento estava tão vazio!
— Que apartamento, Luzia?
— O que eu aluguei. Um freguês se ofereceu pra prestar fiança, dizem que isso é difícil.
— Não é difícil, é um sonho. E você se queixa dos homens?
— Quer dizer: de todos, não. Comprei os móveis no crediário e agora vou comprar uma radiovitrola. Quando acabar o pagamento compro a geladeira.
— Parabéns, minha filha, você venceu.
— Ah, doutor, não diga isso. Estou só começando. Quando quiser, apareça lá em casa que me dará muito prazer. Casa de pobre, mas tem uísque pros amigos. Recomendações à madame, um beijo pros netinhos!
E seguiu — o alegre estampado, a saia curta, as pernas longas e bem esculpidas, o bico fino dos sapatos, o sorriso de dentes alvos no belo moreno carregado do rosto.

In FERREIRA, Marcos (Editor de Cultura). O Mossoroense - Mossoró-RN, domingo, 8 de dezembro de 2002

Nenhum comentário: